Sem poesia, a vida seria a morte.


quarta-feira, 2 de maio de 2012



Há dias não come, não tem sede. Chega esse tempo estranho, com estômago cheio apesar de vazio. Uma vez leu num livro que isso era o começo da morte, a dissolução dos quatro elementos e começava assim, pela dissolução da terra, da matéria. Mas não dissolve fácil não, tinha lembrança que ainda havia muito o que passar na pele. Fria. As mãos permaneciam imóveis ao lado da grade da cama, brancas e magras, com um esmalte de semanas quase todo em cacos. Não consegue mexer seu corpo, que tem um peso nunca sentido antes. Tenta levantar a cabeça, mas o olhar só alcança o teto da enfermaria. Deve estar na mesma posição há horas...dias..ouve alguns passos no corredor, alguém se aproxima, descobre seu peito nu. Examina com esse aparelho frio que os médicos usam para escutar o coração..ah, se seu coração pudesse dizer o que sentia ao aparelho.. Olha o soro na cabeceira da cama. Gota a gota. Parece que pode escutar o som de cada gota que entra por sua veia. Os braços doem, pesados...pensa se na morte o frio ainda pode ser pior. Sim, parece que pode. Os poucos pelos se eriçam, seus mamilos enrigecem. Os peitos ardem, cheios. Eram pequenos, mas ficaram tão bonitos na gravidez. Lembra que gostava de tomar sol na janela do quarto se arriscando ser vista seminua. Gostava do risco, se achava bonita e poderia ser admirada..agora era permitido. Num soco seco, falta o ar e uma lembrança. Onde estará seu filho? Ainda podia sentir seus movimentos em seu ventre, mas agora lembra que o parto já tinha acontecido. Muita dor e um momento de escuridão quando viu um anjo sobre sua fronte. Não, eu não posso morrer agora, disse ao anjo, que sorriu uma tristeza. Meu filho? Onde está meu filho? Sentia um líquido quente escorrendo no meio das pernas, molhando suas costas..o médico aos berros: Hemorragia! Ela está parando!

Parou. Voltou. Paralisada dentro desse túmulo de carne e osso onde é frio e nada se mexe. Os passos se aproximam de novo. Alguém mexe no soro, muda a posição da cortina, abrindo a janela. Lá fora um dia cinza. Frio. Ninguém pode ouvir sua súplica silenciosa...seu filho, seu frio. Um instante numa eternidade e adormece. Sente um calor que acaricia o seio, e a dor começa a ir embora. Muitos passos no corredor, um grito.
Tão jovem, tão bela, tão fria. Tão morta.

Sem dor, sem frio, o leite escorre de seus mamilos rijos. O anjo a toma nos braços, ela sorri, saciada. Dissolvida na vida, amamentou sua morte.


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